ANÁPOLIS GOIÁS
CONEXÃO SERTANEJA
Atualizado em 23/07/2024 - 12:59
Iniciativa partiu da própria dona do imóvel. Dona Lila aparece no painel quando era criança (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues/Rádio São Francisco)
Iniciativa partiu da própria dona do imóvel. Dona Lila aparece no painel quando era criança (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues/Rádio São Francisco)

Uma casinha charmosa resiste ao avanço dos pontos comerciais e dos prédios sobre o centro de Anápolis. Begônias e flores decoram a pequena varanda do imóvel, na esquina da Rua 1° de Maio com a Rua Santana.

Até pouco tempo atrás, existia ali um muro tomado por vinhas que ofereciam a bondade de seu verde àqueles que, a caminho do trabalho, paravam um instante para apreciar a presença curiosa das folhas, onde o resto é concreto, asfalto e sol.

Num dia, as vinhas foram cortadas e emboladas, colocadas na calçada para secar antes de serem acomodadas em sacos de lixo. No muro, as cicatrizes deixadas pelas raízes foram cobertas por um tom fechado de cinza. Mas, o que parecia ser o fim, era apenas o começo e a feiura da cor de concreto era, na verdade, uma tela que esperava as pinceladas do artista.

Pessoas pararam para conversar com os artistas enquanto eles trabalhavam na pintura (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues/Rádio São Francisco)
Pessoas pararam para conversar com os artistas enquanto eles trabalhavam na pintura (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues/Rádio São Francisco)

Pouco tempo depois, havia ali uma pintura que tomava toda a lateral da construção. Ali, casas em estilo colonial cercam um campo margeado de árvores. Em um canto do painel, quatro crianças caminham juntas em direção a uma igreja branca, de vigas azuis, que domina o painel. Os nomes delas estão escritos logo embaixo: Heriberto, Laide, Laucy e Lila.

Quem são aquelas pessoas? Onde era aquele lugar tão diferente de qualquer paisagem que exista hoje em Anápolis? E… quem havia criado aquela obra de arte?… Em um cantinho da pintura, duas assinaturas e um número de telefone demarcavam o início de uma busca por respostas.

Igreja Sant’Ana aparece na pintura

Em entrevista à Rádio São Francisco, o artista plástico, músico e professor de artes Marcus Gomes de Lima, que utiliza o nome artístico Liogam, conta que a obra foi realizada por ele em conjunto com outro professor e artista anapolino, Nazareno Pereira Filho, também conhecido como Napefi.

“Fazer este painel me trouxe muita alegria. Esta imagem da Igreja Sant’Ana representa o início da cidade, Anápolis cresceu ao redor dela”, conta Liogam.

O artista destaca as diferenças entre a paisagem antiga e a atual. “Muitos não sabem, mas antigamente a frente da Igreja Sant’Ana era voltada para o leste, em direção a onde hoje é a Rua 1° de Maio”.

Outras mudanças saltam aos olhos: o convento da paróquia está ausente, há um curral atrás da igreja e até um pequeno córrego que atravessa o largo, onde hoje é a Praça Santana. “Fizemos uma pesquisa para executar esta obra, usando fotos antigas como referência, além do relato de alguns moradores mais antigos do centro”.

Obra de arte chamou atenção daqueles que passavam pela Rua 1° de maio, no centro de Anápolis. (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues / Rádio São Francisco)
Obra de arte chamou a atenção daqueles que passavam pela Rua 1° de maio, no centro de Anápolis (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues/Rádio São Francisco)

Liogam conta ainda que se surpreendeu com a reação do público à obra. “Enquanto trabalhávamos, várias pessoas paravam, buzinavam ou faziam perguntas: ‘Nossa, maravilhoso!’, ‘Que lindo!’, ‘É a Igreja, não é?’. Não esperávamos que fosse ter esta repercussão. Ficamos felizes, especialmente porque viram e valorizaram. Não é apenas uma imagem, é uma parte da história de Anápolis”.

O trabalho, conforme o artista, foi realizado por uma iniciativa da própria dona do imóvel, ela mesma que aparece na pintura, quando criança. Dona Lila, em uma tarde seca e quente, abriu as portas de casa para falar sobre o significado do painel e contar a história de sua família, que se confunde com a própria história de Anápolis.

Conversa num banco branco

Dona Lila tem 90 anos e muita história para contar. (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues / Rádio São Francisco)
Dona Lila tem 90 anos e muita história para contar (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues/Rádio São Francisco)

Dona Lila contou sua história na varanda de casa. Muitas plantas refrescavam a conversa, algumas delas, ele assegura, foram plantadas ainda nos anos de 1980. Um banco de madeira pintado de branco domina o pequeno espaço.

Alegria confessa, Lila namorou sobre aquele mesmo banco, com a atenta supervisão dos pais. Em tudo se sente a calma concentrada do que envelhece sem se deteriorar. Os lírios, com seu verde-escuro, por exemplo, não se cansaram de florescer.

O nome bom de se falar, que parece apelido, na verdade, está escrito na certidão de nascimento: Lila Curado de Carvalho Taveira, nascida em 1933. “Quando minha mãe estava grávida de mim, a irmã dela disse: ‘Estou lendo um romance francês lindo. A moça se chama Lila e tem olhos azuis”.

O nome do livro se perdeu na memória, assim como a história que ele contava. Mas, a Lila de verdade, continua com 90 anos, em plena saúde, e seus olhos também são azuis.

Filha caçula do comerciante Benedito Borges Carvalho e da dona de casa Dulce Curado Carvalho, Lila é neta de Américo Borges de Carvalho, 10° prefeito de Anápolis. “Meu avô, ele foi o pivô de tudo, comprou vários lotes aqui e deu um para cada filho. Meu pai era o filho mais velho e ficou com esta esquina. Esta casa tem mais de 100 anos e eu nasci aqui”, contou.

Uma foto de família, tirada anos antes do nascimento de Lila. A criança sobre a cadeira é sua irmã mais velha (Foto: Reprodução / Arquivo Pessoal)
Uma foto de família, tirada anos antes do nascimento de Lila. A criança sobre a cadeira é sua irmã mais velha (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

Formada no Magistério pelo Ginásio Auxilium, ela foi professora da alfabetização em uma escolinha que ficava atrás da Igreja Sant’Ana, onde hoje um enorme prédio faz sombra sobre a Avenida Goiás. “Dei aula por 11 anos e ensinei muitas crianças a ler e a escrever. Até hoje recebo ligações e visitas de pessoas que foram meus alunos e não se esqueceram de mim”, afirmou.

Lila casou-se com o farmacêutico Francisco de Assis Taveira e se mudou em 1963 para Brasília. No entanto, nunca se esqueceu de Anápolis, e sempre voltava para visitar os pais. “Quando minha mãe estava perto de morrer, ela me disse: ‘Lila, eu sei que você vai continuar com a casa e que vai cuidar de tudo’. E foi o que aconteceu”. Ela tem quatro filhos, três netos e duas netas.

Apesar do zelo com que preserva a casa dos pais, Lila não se opõe às mudanças pelas quais a cidade passou. “Eu não sou contra o progresso, é a vida, as coisas mudam. Não podemos parar no tempo”.

Ela disse, no entanto, que a cidade ficou mais perigosa e que, por isto, toma alguns cuidados que antes não eram necessários. “Não atendo mais o portão depois das 10 da noite. Hoje tenho esta grade na minha janela, também por segurança”.

Quatro Irmãos

Em um detalhe da pintura, quatro crianças andam juntas em direção à Igreja Sant'Ana. (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues)
Em um detalhe da pintura, quatro crianças andam juntas em direção à Igreja Sant’Ana (Foto: Gabriel Emilliano Rodrigues/Rádio São Francisco)

Lila tem duas irmãs e um irmão, que aparecem junto dela na pintura.” O menino que está de mãos dadas comigo é Heriberto. Ele tinha 10 anos e eu apenas 7. Nessa época, minhas outras irmãs, Laucy e Laide, tinham 8 e 9 anos. Isso por volta dos anos de 1940“.

“Minha infância foi uma das mais lindas que se pode pensar. Este espaço onde hoje é a Rádio São Francisco era um descampado onde eu e meus irmãos brincávamos. Mamãe tocava órgão na igreja e nós esperávamos ela para vir para casa”, contou.

Entre as diversas fases pelas quais a Igreja Sant’Ana passou, Lila escolheu para o painel aquela que coincidiu com seu tempo de menina. “Primeiro era apenas uma capelinha, depois construíram a igreja, aquela que está pintada no meu muro, em 1909“.

Conforme o livro “História. Raízes. Celebração“, que retrata a presença dos Frades Franciscanos em Anápolis, a Paróquia Sant’Ana foi instalada em 1891, mas só passou a ser administrada pelos frades em 1944, passando por extensas reformas poucos anos depois.

Imagem que serviu de referência para a pintura mostra Igreja e Largo de Sant'Ana em 1922. (Foto: Reprodução / Acervo Pessoal)
Imagem que serviu de referência para a pintura mostra Igreja Sant’Ana e Largo onde hoje é a Praça Santana, em 1922 (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

Lila guarda com carinho uma coleção de documentos e fotos antigas. O primo, William Borges de Carvalho, de 64 anos, contribuiu para o pequeno acervo, inclusive com a imagem que serviu de referência para a pintura. A imagem, datada de 1922, foi registrada pelo pai dele, Godofredo Borges de Carvalho.

O primo, que mora a um lote de distância, em uma casa do mesmo período e igualmente preservada, emprestou também um mapa, que mostra a Igreja Sant’Ana e o Largo onde hoje é a Praça Santana, como eles eram entre os anos de 1909 e 1944.

Esboço dos arredores da Igreja Sant'Ana nos anos de 1920. (Foto: Reprodução / Arquivo Pessoal)
Esboço dos arredores da Igreja Sant’Ana nos anos de 1920 (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

“Mamãe morreu no hospital segurando a minha mão, lúcida de tudo, eu peço a Deus que me conceda a mesma graça”. Apesar destas palavras, ela olhava apenas com felicidade para o próprio colo, onde descansavam as fotos. Testemunhas de sua vontade de mostrar e rever uma lembrança amada, e da bondade de seu gesto, ainda maior do que aquela das plantas que antes tomavam o muro.

Registros encontrados dentro do Convento da Paróquia Sant'Ana também mostram a igreja e o largo no mesmo período. (Foto: Imagens Cedidas à Rádio São Francisco)
Registros encontrados dentro do Convento da Paróquia Sant’Ana também mostram a igreja e o largo onde hoje é a praça no mesmo período (Foto: Imagens cedidas à Rádio São Francisco)

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